Durante os dias que estive em Trincomalee escrevi algumas passagens mas ontem antes de dormir que o melhor era juntar tudo numa só mensagem, com relatos diários de alguma coisa que tenha marcado:
Dia 7 - Sábado fiz a viagem até Trincomalee, normalmente são 5 horas mas o nosso condutor tem o pé pesado e em 4 horas estamos lá. São só 100 km mas como só existe 1 estrada, tenho que ir quase ao meio da ilha e depois voltar atrás, a estrada é boa até Habarana mas depois de lá até Trincomalee parece que estamos a percorrer a estrada de Nampula a Cuamba, só buracos.
Trincomalee foi uma cidade bastante importante do tempo dos ingleses, foi nesta cidade que ficou sediada base naval dos ingleses e parte dos americanos quando houve a 2ª Guerra Mundial. Tem uma grande baía, não sei qual o tamanho mas pareceu-me bastante grande, tem ainda a base naval, agora da marinha do Sri Lanka, muitas traineiras, barcos de carga, parece-me uma cidade maior que Batticaloa mas eles dizem que não… Vou ter que averiguar isso!
Posso dizer que gostei do que vi, fiquei instalado na casa do padre, fez-me lembrar mesmo Moçambique, há quartos externos e quartos internos na casa, eu como sou visita fiquei nos quartos dentro de casa. Até no banho é igual, há chuveiro mas a pressão é tão pouco que o melhor é mesmo tomar banho de caneco que é tão bom. Aqui não sinto falta da água quente, sabe mesmo bem os banhos de água fria e aqui parece que faz mais calor, os banhos serão redobrados…
Mesmo em frente à casa do padre está a catedral de Trincomalee, não tem a envergadura das catedrais que vemos pelo mundo fora mas é uma igreja bastante acolhedora. Se quiser ir até à praia é andar 5 minutos e estou lá mas a verdade é que só passei por lá de carro, ainda não fui lá ver… Sortudos são os da Cáritas porque têm vista privilegiada para a praia e forte.
Tal como em Batticaloa, aqui também existe um forte, a origem é portuguesa mas pouco ou nada resta do nosso forte, talvez mesmo só os alicerces, quando os holandeses chegaram fizeram o favor de criar tudo de novo, pelo que li, diziam que as estruturas portuguesas não eram boas porque a preocupação dos portugueses não era a questão de protecção e de comercio mas sim da evangelização.
Sabia que ia começar as aulas às 16 mas a 1ª turma nem apareceu, não sei se culpa deles ou do padre, não quis perguntar… Como não estavam, fomos para a 2ª turma. Mais uma vez, parecia África, no meio do mato havia 1 comunidade com 1 aglomerado de casas, estas com chapa e tijolo, e lá estava a minha futura sala de aula, um alpendre de uma casa e estava cheio… A comunidade chama-se Paliyuthu e vou ter cerca de 20 alunos aqui com idades entre os 14-30 anos. Explicamos em linhas gerais como ia decorrer este programa, falei um bocado para eles, vai ser mais fácil porque todos eles falam inglês e sabem falar um pouco de “papiamento”, o criolo deles.
A 2ª comunidade já é um pouco mais diferente, chama-se SelvanayagaPuram, poucos falam inglês e nada de papiamento, só 1 senhora. Aqui vou ter uma turma bastante diversificada, o interesse é geral e como só venho cá 10 dias por mês decidi abrir esta excepção, turma deve ter mais de 20 alunos e tem alunos desde os 14 aos 40 anos, há um grande interesse da parte das mulheres, homens serão mesmo muito poucos, só os mais novos.
Depois destas apresentações lá fomos para casa, não é Domingo mas padre brindou-nos, eu, Jude e ele, com 1 cerveja e desta vez 1 heineken e 1 aperitivos da terra, muito bom.
Dia 8 - Foi um dia em grande!
Eu quis criar o hábito, não sou obrigado, de tentar ir à missa todos os domingos, não tenho esse hábito em Portugal mas já em Macau aconteceu isso, sinto que ao ir à missa estou em contacto com as pessoas que me são queridas, é uma ligação a 3, eu, Deus e os outros, não sei explicar…
E aqui já percebi o que diziam, a missa mesmo em frente de casa foi em inglês, é mais fácil para mim acompanhar, saber as leituras mas as missas em tamil também são boas porque acabo por ter que fazer outro tipo de introspecção, outro tipo de acompanhamento.
O ritual desta missa é pouco diferente da missa em Batticaloa e lembrei-me de 1 “conversa” que tive há tempos com 1 amigo de um blog vizinho, o FireHead, também macaense sobre a missa tridentina e aqui há ainda vestígios dela, as pessoas estão muito mais vezes ajoelhadas, padre fala muito mais, na comunhão as vezes têm que estar ajoelhadas, entre outras coisas.
Agora contando as aulas: foram 3 horas na 1ª turma, nem dei pelo tempo passar, estava mesmo a gostar até que padre avisou que era tempo de mudarmos de comunidade, foram 3 horas onde deu para começar com o básico, eu vou tentar gravar algumas aulas para depois mostrar mas é engraçado vê-los a dizer: olá! Como está?, Como se chama?, De onde é?. Como esta turma tem os músicos e como era aula de 3 horas mostrei 1 músicas que trouxe, comecei com as músicas tradicionais que o meu mano Carlos arranjou, 1 rapsódia de musica portuguesa, apesar de ser de uma tuna está bastante boa, depois mostrei a “Laurindinha”, ficaram todos contentes. E como a comunidade burgher é católica decidi mostrar 2 músicas “beatas” da colectânea que a mana Rita teve a amabilidade de fazer, destas não vou dizer quais foram pois quero fazer 1 surpresa mais à frente.
Na 2ª turma era só para ficar 1 hora mas acabei por ficar 2horas e tal e fiquei “assustado” com o nº de pessoas, eu até perdi a conta, mais de 30 e aqui tenho os alunos propriamente ditos e os filhos, é uma turma bem diversificada. Eu fiquei um bocado com medo porque achava que seria complicado fazer-me perceber perante todos mas felizmente correu tudo bem, gostei muito de ver os mais pequenos a contarem até 20, vão saber 1ª em português do que inglês =)
Aqui há um respeito enorme, ele quando falo eles estão calados e só falam quando eu peço, não há as conversas parelas, pelo menos não houve ontem…
Se na 1ª turma as aulas são no alpendre da entrada de uma casa, nesta comunidade dou no telhado de 1 casa, é o único sitio com espaço e arejado, acho que só vendo as fotos é que consigo explicar…
Dia 9 -11 - Os dias agora têm a sua rotina, parece que entrei na máquina, acordar às 7:50, 8:00 pequeno-almoço, agora com companhia o que é bom, 8:30 banho, 9:00 começar a passar a aula de ontem a limpo para dar aos alunos, estou a passar tudo e traduzir, é mais fácil para eles. Isso demora até 10:30 e começo a ver o que vou dar no dia, no último dia comecei a preparar também logo a aula do dia para não perder tanto tempo depois na aula mas não correu muito bem porque tinha 1 ideia de aula e só fiz a 1ª parte…
Da parte da tarde leio um pouco, agora estou a ler “ De Batticaloa a Chaul”, um livro de K. Jackson que tem textos sobre a cultura burgher, fez um estudo da fonética e levantamento de músicas e contos na comunidade burgher, está a dar para perceber melhor a história e as origens dele. Com o livro senti a necessidade de deixar alguma coisa para eles e fazer alguma coisa para levar 1 pouco deles até Portugal, dar a conhecer o nosso país que temos descendentes no Sri Lanka e que se orgulham de serem descendentes de Portugueses.
A origem deles é portuguesa mas dividida por 3 tipos: casados ( pai português e mãe euro-asiatica), mestiços (pai português e mãe local) e os outros ( que podiam ser os caffres vindo de Moçambique, os Indianos de Goa, etc). Quando os holandeses vieram para esta área, as mulheres viúvas e solteiras casaram-se com os soldados holandeses, daí a existência de tantos apelidos holandeses mas a língua, os costumes, a religião continuou a ser a nossa. E foi assim durante os anos, até aos dias de hoje.
Considera-se que o Português do Sri Lanka o criolo por excelência na Ásia pois foi o criolo que “ofereceu” mais palavras à língua local, neste caso o Cingalês.
Os burghers sempre foram considerados de casta baixa, tinham e têm profissões como mecânicos, carpinteiros, pescadores, ferreiros, não têm uma posição social elevada. Ainda se continua a preservar o casamento entre burghers, preferem isso ao casamento entre burgher e tamil porque dizem que assim se perde a cultura mas acredito que isto irá acabar pois eles não são assim tantos, até preferem casar primos do que com tamils, por exemplo.
Mas contando o que quero fazer e já comecei a fazer: Um dicionário com português antigo – inglês - português moderno, a base são as palavras que eles me estão a ensinar mas também com o auxílio de 2 dicionários já existentes mas que datam do séc. XIX e inicio do sec. XX.
Também quero começar a recolher as músicas, os contos tradicionais que eles sabem e isso pensando mais à frente, irei depois dar aos entendidos da matéria, para os linguistas interessados. Infelizmente em Portugal só temos 1 pessoa que tem esse interesse e que publicou um livro quando se fez 500 anos dos Descobrimentos, depois disso pouco ou nada há sobre este criolo, as 3 pessoas que mais escreveram sobre isto e que ainda estão vivos são: I. Smith, Jorge Flores e J. Jackson, talvez será para eles que irei mandar depois as coisas que recolher, saberão fazer melhor trabalho que eu pois eles é que são os entendidos, eu faço o trabalho que gosto, o de campo. Vamos ver se eles irão aceitar, até vão desconfiar =)
Afinal são 3 turmas, ontem comecei nova turma, a da cidade e são 13 pessoas e 2 rapazes, é um grupo engraçado porque são quase todos da mesma família, tenho mãe e filhas, irmãos e tia e sobrinhos. Estão um pouco mais atrasados mas nos próximos meses meterei em pé de igualdade com os restantes.
As aulas estão a correr bem, a motivação ainda continua em alta, até acho que o interesse é cada vez maior, tenho que os acompanhar mas ontem, pela primeira vez, tive que me sentar e descansar 1 bocado…
Dia 13 - Jantei na casa onde dou aulas e que grande banquete, viu-se que ficaram mesmo contentes por estar a jantar com eles, claro que queriam ter tudo bonito e da melhor maneira mas quando disse que iríamos comer todos juntos, até ficaram espantados. Parece que há uma certa separação, já tinha reparado nisso com o padre, parece que é por estatutos, só se senta perto das pessoas com o seu estatuto, por ex. ao meu lado sentaria apenas o padre e o resto noutra mesa mas eu desde o 1ª dia que tenho feito o esforço para não haver essa separação.
Como é que surgiu o convite? Na aula anterior meio na brincadeira disse que estava triste com Trincomalee porque ainda ninguém me tinha convidado para jantar e eu queria experimentar outras comidas. Logo a família da casa disse que no dia seguinte era o convidado, juntaram-se duas famílias e ajudaram: cada uma com a sua especialidade, que grande pitéu!
Ficou combinado que agora todos os meses iria jantar numa comunidade diferente, pelo menos ninguém fica chateado ou dizem que eu tenho preferência por esta ou por aquela.
Dia 14 - Todos os dias olho para o forte quando vou dar aulas e hoje decidi ir até ao forte, saber um pouco da história, ver o que se passa dentro. 2 dos meus alunos
juntaram-se a mim e lá me foram fazer 1 visita guiada.
Este forte também tem a sua origem portuguesa mas pouco ou nada resta da nossa muralha, nem um escudo português se vê, os holandeses mandaram abaixo e “apagaram” o que era Português, agora só há marcas holandesas.
Ao entrar no forte parecia que estava a entrar num castelo português, dos grandes porque lá dentro era bastante grande e pus-me a imaginar a cidade de Trinco do séc. XVI… Agora está ocupada pelo exercito do sri lanka e existe um templo hindu que parece que é bastante especial, dava para ver pelo nº de pessoas que lá estavam… Reza a lenda que um dos deuses hindus que não sei o nome no alto da montanha quebrou uma rocha ao meio e criou uma fenda que eles dizem que é especial, dá para ver nas fotos… É um mito mas eles acreditam!
1reparo: para entrar no templo é preciso descalçar, fiquei com as solas queimadas, estava muito calor!
No alto do templo tem-se uma vista muito bonita pela baía de Trinco e tenho que admitir que Trinco é mais bonito que Batticaloa… Podia ficar aqui mais tempo =)
Ao voltarmos para casa tivemos tempo para parar e beber 1 coca-cola. Fiquei a saber que não se pode fumar na rua, o governo proibiu, apenas e só em casas ou locais autorizados, assim explica o porquê de não ver pessoas na rua a fumar… Normalmente compra-se cigarros a vulso, 20 rupias um cigarro o que dá 12 centimos.
Hoje alguns dos meus alunos, os mais velhos, tiveram um encontro com um linguista alemão, está a fazer 1 estudo sobre o português burgher, fiquei na conversa com ele ainda algum tempo, trocamos algumas opiniões, e iremos estar juntos em Batticaloa na próxima semana, disse que iria ajudar com o que soubesse e ele em contrapartida vai-me arranjar 1 programa para fazer o dicionário, parece que há um programa todo xpto, gravas as vozes e aquilo converte para letras, vamos ver.
Uma das coisas que falamos foi mesmo sobre o desinteresse dos portugueses nesta comunidade, eu disse que até sentia vergonha disso mas não podia fazer nada, Portugal só se lembrava de Goa, Malaca, Macau, Timor… era bom que se lembrassem e que ao menos soubessem que existia estes burghers, acho que se fizesse essa pergunta: Sabe o que é um burgher? 99% dizia que era uma espécie de hambúrguer… Eu não condeno porque eu próprio só fiquei a saber quando soube que vinha para cá. Mas seria de bom agrado que o Instituto Camões, a Fundação oriente que se lembrassem também disto, apoiassem estudos sobre esta cultura, ajudassem…
Dia 17 - Depois de 10 dias em Trinco, voltei para Batticaloa, parece que continua tudo igual e foi assim 1 sentimento um pouco estranho, parece que as aulas ficaram ali do outro lado e que agora voltei a parar… Espero que não seja assim e que amanha apareçam os alunos!
Já falei do Alemão? O Linguista que está a fazer um trabalho sobre o português burgher? Então não é que o rapaz fala português? Eu a pensar que só iria falar português ao telefone e hoje foi ao vivo e a cores. Ele tinha-me dito para se encontrar comigo quando chegasse a Batti, cheguei, almocei, banho e fui ter com ele a 1 hotel mesmo perto de dutch bar, área de burghers, fui-lhe mostrar 1 esboço de dicionário, ficou de nos ajudar com o dicionário, parece que é craque em dicionários e aplicações multimedias para a linguística… No meio da conversa perguntei se sabia falar português e ele responde com o seu sotaque alemão: português não sei mas portunhol consigo, nem sabem a alegria que foi! O resto da conversa já foi em Português, muito mais fácil, fiquei a saber um pouco mais do que andava a fazer, o que tinha feito, se fosse em inglês seria muito complicado.
Fiquei com o bicho da investigação, querer estudar mais…
E como já escrevi de mais, fica o proximo post com as fotos!
4 comentários:
Alô! Hoje lembrei-me de ti. Vi pelas ruas de Belém cerca de 20 turistas. Fiquei na dúvida se seriam meus conterrâneos e dei por mim a sorrir quanto reparei que tinham bonés a dizer Sri Lanka. Tens razão quando dizes que os cingaleses são parecidos com os indianos ;)
Fico contente por estares a fazer sucesso por aí. O professor, que apesar de estar com um ar super sinistro, consegue pôr os alunos em concentrados e em silêncio.
Para terminar tenho que dizer há muitos portugueses que não sabem quem são os goeses nem o papel que os portugueses tiveram em Goa. Enfim!
Beijinhos e até breve
Há turistas cingaleses em Portugal? muito bem!
Ar sinistro? Queres ser mais directa? Quase estás a dizer que estou com mau-aspecto =)
Goa apesar de não ser muito falada ainda é dos locais que se fala mais, é ou não é? Muito graças a vocês que ainda fazem por isso, se não fossem vocês os portugueses também se esqueciam de Goa.
beijos
"Vais vir" um poliglota perito em dialetos :)
Continuo a aperceber-me da desvalorização dada à difusão de Portugal no oriente, infelizmente também só aprendi agora contigo o que era um Burgher... Bom pelo menos aprendi :)
Deve ser fantástico estarmos fora e encontrar alguém que fale a nossa língua, mesmo não sendo português...
Catarina: eu sempre gostei de dialetos e ver que Portugal deixou tantos criolos por aí, seria bom Portugal tentar valorizar mais a língua que é tão rica e que foi tão importante nos tempos dos descobrimentos!
O meu grande trabalho vai ser falar cada vez mais dos burghers, eles têm que ser conhecidos no nosso país, eles sentem-se como portugueses!
bjs
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